terça-feira, 26 de outubro de 2010

O CACHORRO DA MUDANÇA


Era um bom dia para se mudar de casa.
Nenhuma nuvem, clima tropical e boa disposição de toda a família.
Não parecia que ia ter tanta coisa, mas elas se procriaram como coelhos. Ajeitar toda a mudança foi um trabalho de profunda estratégia da parte da família.
E o cachorro a tudo assistia. Vez por outra pulava, latia e acompanhava com seu farfalhar de rabo a movimentação.
Uma nova vida estava começando.
Entre um latido e outro, sonhava com seu projeto de demarcar o terreno da nova casa, novos espaços para enterrar os ossos. Como seria sua nova casinha? Quem seriam os cachorros da vizinhança? Que lugares iria desfilar com seu dono, para mostrar a todos o quanto era querido e amado? Quem iria carrega-lo até o novo local?
E enquanto o cachorro vivia o futuro, o presente de desenrolava mais rápido do que o esperado, mais confuso do que o planejado e mais atrapalhado do que se pensava.
O cachorro, enquanto aguardava, se voltou para as lembranças do que já tinha vivido naquela casa desde que nasceu. Era a única que tinha conhecido. Quantas brincadeiras agradáveis que ocorreram... Como sair dali sem levar consigo as lembranças boas? Como se esquecer das dificuldades que presenciou? Dos choros e perdas que viu ao lado da família que amava? Como deixar o medo que sentiu cada vez que um deles ficou doente? Como esquecer a alegria ao ver cada um deles chegar do trabalho ou da escola?
E enquanto o cachorro revivia o passado, o presente se desenrolava cada vez mais complicado pelos móveis que não passavam na porta, cada vez mais disperso nas caixas de louças que iam para o caminhão, cada vez mais focado em trancar logo a casa , entrarem no carro e partirem juntos com a mudança.
Foi assim que o silêncio chacoalhou o cachorro para o presente e uma dor incrível dominou seu peito ao perceber que ficou esquecido no jardim de uma casa vazia.
Ansiou tanto o futuro, se deprimiu tanto pelo passado, que não viu o presente a lhe gritar nos ouvidos.
E você?
Vem ouvindo o grito do presente no seu ouvido para que viva o agora? Vem exercitando a tarefa diária de viver um dia depois do outro, sem esperar dele nada mais do que o hoje?
Quer saber o que aconteceu com o cachorro?
Pela primeira vez ele precisou sair do comodismo, das desculpas que se dava por ser pequeno, por ser um animal, por ser irracional e ir à luta.
Teve que abandonar o futuro com o passado, pois seu presente estava em risco. Entendeu finalmente que este era o único tempo que existia, que exalava vida e valia a pena se empenhar.
E o cachorro correu pelas ruas atrás do carro, suas orelhas atentas e língua para fora, pois investiu mais esforço do que supunha ter. Descobriu mais força nas pernas do que sua capacidade previa. Viu-se pensando em alternativas que não sabia que sua condição canina permitia.
Enxergou pontos de vista do bairro que nasceu, que nem imaginava existir. Latiu em tons que não sonhava ser capaz. Foi aí que entendeu que seus planos para o futuro de nada adiantariam se ele não achasse uma saída para o que ocorreu. As lembranças do passado e o apego de nada favoreciam a sua corrida, pelo contrário, o fardo do passado pesava em suas costas.
E a segunda decisão precisou ser tomada para sair do comodismo: abandonar o que já foi, parar de ansiar com o que ainda não veio e se movimentar no tempo real, onde as coisas podiam acontecer: hoje.
O cachorro aprendeu a correr em velocidades mais determinadas, a se expressar de forma mais decisiva e a não desistir na primeira esquina que parar.
Deu graças por ter sido esquecido na mudança. Quando a família o achou perambulando nas ruas do bairro, já não era mais um cachorrinho mimado, esperando ser carregado no colo. Era um cachorro que passou pelos obstáculos, que decidiu encarar os problemas. Que foi obrigado a mudar sonhos e projetos por causa deles e se lapidou nas dificuldades.
Agora era um cachorro que fez da corda de uma forca um laço para agarrar as oportunidades, que fez da decepção por ter sido abandonado, lenha para queimar no fogo do perdão. Que não correu por alguns quarteirões, que avançou anos no seu crescimento pessoal.
Ensinou para nós humanos, que quando achamos que Deus esqueceu a gente na mudança, podemos sentar e chorar nossa miséria, mas também podemos ver nisto a nossa melhor chance na vida de viver com uma profundidade que só os sábios sabem.


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